Antimatéria

A equação básica da mecânica quântica, a equação de onda de Schroedinger é uma equação não relativística. Corresponde ao caso em que a energia total de uma partícula é dada pela relação:

onde o primeiro termo corresponde à energia cinética e V à energia potencial da partícula. Alguns anos depois de Schroedinger ter apresentado sua equação, Dirac desenvolveu a equação correspondente relativística, para descrever o movimento de um elétron. Como a energia relativística de uma partícula, na ausência de potenciais externos é dada por [ ] , a "cara" da equação de Dirac será algo como:

Note que embora normalmente, nos cálculos relativísticos ignoramos a solução com energia negativa, Dirac observou que não havia razão para ignorar essa solução. Assim previu a existência de elétrons com energia negativa. Como o menor valor para o momento de uma partícula é zero, a equação acima diz que só pode haver elétrons com energia [ ] , como mostra a Figura 1. Um elétron usual, com energia positiva, tendo disponível um estado possível de energia mais baixa (energia negativa), migraria para aquele estado, emitindo a diferença de energias na forma de um fóton. Assim, todos os elétrons disponíveis iriam para esses tais estados negativos e o nosso mundo não seria possível. Dirac postulou então que a natureza é de tal forma que todos os estados de energia negativa estão ocupados. Deste modo, não há como os elétrons de nosso mundo passar para os estados de energia negativa, conhecidos como o mar de Dirac. Pode-se mostrar que esse mar de partículas com energia negativa (isto é, com massa negativa) não interage com nosso mundo usual, não podendo portanto ser observado.

Dirac previu ainda a ocorrência de um fenômeno bastante interessante. Um fóton de alta energia[ ] , tendo energia maior que a abertura entre as duas faixas de energias permitidas para os elétrons [ ]  poderia ceder toda sua energia para um elétron de energia negativa (como no efeito fotoelétrico) de modo que agora este elétron teria energia positiva e seria observado como um elétron normal em nosso mundo. Já no mar de elétrons com energia negativa, sobraria um lugar vago, um buraco. Pode-se mostrar que num mar de elétrons com energia negativa, um buraco se comporta como uma partícula de massa positiva (igual a do elétron), e com carga oposta à do elétron. Este buraco é então visto em nosso mundo como uma partícula similar ao elétron, mas com carga oposta e é chamado de pósitron ou anti-elétron. Do ponto de vista observacional, o fenômeno é visto como a criação de um par partícula-antipartícula por um fóton de alta energia, e daí o nome criação de pares.

Figura 1: Diagrama mostrando as faixas de energia permitidas para os elétrons e a criação de um par elétron-pósitron

A validade dessas suposições de Dirac foi confirmada experimentalmente alguns anos mais tarde, quando em 1932 Anderson descobriu o pósitron em traços deixados por essas partículas em fotografias tiradas com câmaras de Wilson (câmara de bolhas), como a mostrada na Figura 2. Nessa câmara, há um campo magnético aplicado na direção perpendicular ao plano da fotografia, de modo que o pósitron e o elétron, tendo cargas opostas, fazem um movimento espiralado em direções opostas. As espirais têm raio decrescente devido a perda de velocidades das partículas, por colisões com outros elétrons no material. É interessante notar que no mesmo ano em que Anderson publicou suas observações (1933), dois outros artigos foram também publicados, confirmando as observações de Anderson e a origem dessas partículas. Esses dois outros artigos tinham a participação de Giuseppe Occhialini, um físico italiano que logo depois viria para São Paulo, a convite de Gleb Wataghin, para dar início ao Departamento de Física da recém fundada Universidade de São Paulo (ver p. ex. Chadwich, Blackett and Occhialini - Nature vol 131, pg. 473 -1933).

Pode-se também facilmente verificar que, analogamente ao que ocorre no efeito fotoelétrico, a interação de absorção do fóton por um elétron com energia negativa também não permite a conservação do momento linear. Deste modo, a criação de pares só pode ocorrer nas proximidades de uma partícula pesada, como o núcleo atômico, que então recebe a parte restante do momento inicial do fóton.

O pósitron portanto não passa, segundo Dirac, da ausência, um "buraco" no mar de elétrons de energia negativa. Há muitas outras situações em que um "buraco" se comporta como uma partícula. Por exemplo, bolhas de gás no interior de um líquido. Uma situação bem conhecida ocorre em materiais semicondutores, com os quais são produzidos os elementos básicos dos componentes eletrônicos atuais. Nesses elementos, os elétrons normalmente estão ocupando a chamada banda de valência, correspondendo aos estados eletrônicos ligados aos átomos do cristal (ou ao cristal como um todo). Deste modo, estes elétrons não têm mobilidade e não podem conduzir eletricidade. à temperatura zero, todos esses estados estão normalmente ocupados por elétrons e o material se comporta como um isolante. À medida que a temperatura aumenta, alguns desses elétrons ganham energia térmica suficiente para passar a ocupar uma outra faixa de energias maiores, chamada banda de condução. Entre a faixa de valência e a de condução há uma região de energias em que não há nenhum estado possível, numa situação muito similar à do processo de criação de pares. Nos semicondutores, quando um elétron é promovido para a banda de condução, o buraco na banda de valência se comporta como uma partícula positiva, com mobilidade dentro do cristal, conduzindo portanto corrente elétrica.

Figura 2: Fotografia estereoscópica de câmara de bolhas, mostrando a criação de um par elétron-pósitron. Na câmara, há um campo magnético perpendicular ao plano da fotografia. Elétron e pósitron fazem portanto trajetórias espiraladas em direções opostas.

No caso da produção de pares, a promoção de um elétron de energia negativa para energias positivas, com a absorção de um fóton, cria portanto um par elétron-pósitron. Como vimos, um elétron de energia positiva pode vir a ocupar este estado vazio, cedendo a diferença de energia na forma de fótons. Considerando o buraco como um pósitron, podemos então descrever o processo como a colisão entre essas duas partículas. Após a colisão, desaparecem o elétron e o pósitron de modo que podemos falar num processo de aniquilação do par. Sendo partículas de mesma massa e cargas opostas, elétron e pósitron se atraem. Se a colisão não é exatamente frontal, como ocorre na maioria dos casos, há uma quantidade de momento angular relativo às duas partículas, que passam a orbitar uma em relação à outra, formando um sistema binário. Isto tem semelhança com o átomo, somente que aqui não há um núcleo de massa muito maior. Esta semelhança faz com que este sistema seja considerado um átomo exótico, chamado positrônio. Como num átomo comum, em que um elétron em camadas atômicas de energia (ou momento angular) elevada, perde energia passando para órbitas mais baixas, emitindo fótons a cada passagem, o positrônio também vai perdendo momento angular, o pósitron cada vez mais perto do elétron, até que se aniquilam mutuamente (o elétron ocupa o buraco!) emitindo em geral dois ou três fótons (dois sendo muito mais provável. A emissão de um único fóton é possível, no caso em que o pósitron colide com um elétron fortemente ligado a um átomo, mas o processo é muito raro. Emissão de mais de três fótons também é possível, mas são processos igualmente improváveis). Esse processo ocorre muito rapidamente, o positrônio durando em média cerca de 100 ns. No caso de emissão de dois fótons, por exemplo, a energia total dos fótons deve ser de 1022 keV, supondo que o positrônio se encontra em repouso, como normalmente se encontra, no momento da aniquilação. Para que haja também a conservação do momento, é necessário que os fótons tenham a mesma energia (e portanto mesmo momento), tendo portanto cada um 511 keV, sendo emitidos em direções opostas.

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