Tecnologia, pessoas e mercado: o Brasil no novo cenário da Fusão Nuclear

Engajado e otimista com o futuro, o pesquisador Gustavo Canal (IFUSP) conta, em entrevista, um pouco do seu trabalho em prol do Programa Nacional de Fusão Nuclear.

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A convite da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), órgão ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o pesquisador do IFUSP Gustavo Canal trabalha desde 2021 no desenvolvimento e implementação do Programa Nacional de Fusão Nuclear (PNFN) e na recriação da Rede Nacional de Fusão (RNF). Esta atuação ocorre mesmo antes de sua nomeação em Diário Oficial como Secretário Executivo, seguindo os passos do antecessor Ricardo Galvão (Secretário Executivo da primeira versão da RNF). "Para mim, é independente ter a nomeação ou não. O que eu mais quero é contribuir para o desenvolvimento da área de fusão nuclear no País", comenta.

O docente, que trocou uma posição confortável no Princeton Plasma Physics Laboratory por uma bolsa de Professor Visitante do Exterior para poder regressar ao Brasil, mergulhou de cabeça na elaboração do PNFN enquanto vivia um momento caótico em sua vida particular: em um processo de mudança de endereço, foi surpreendido pela pandemia de COVID-19 e ficou sem residência, chegando a depender do abrigo da família e de amigos por nove meses.

Canal se recorda do primeiro contato da CNEN, em 2020, um convite de colaboração direcionado a pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e do Laboratório de Física de Plasmas do IFUSP; direcionado também aos professores Ricardo Galvão e José Helder Severo: "Houve várias reuniões entre membros da CNEN, do INPE e nós do IFUSP. Na época, o Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da CNEN era o Madison (Coelho de Almeida) e o Presidente da CNEN era o (Paulo Roberto) Pertusi. Eles foram responsáveis por promover as discussões entre os membros desse grupo colaborativo CNEN-INPE-IFUSP sobre o desenvolvimento fusão nuclear como área estratégica do País. Hoje, esse trabalho da CNEN vem sendo realizado pelo novo Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da CNEN, Wilson Calvo, e pelo novo Presidente da CNE,  Francisco Rondinelli. O Brasil possui os únicos três tokamaks do hemisfério sul do planeta e o PNFN foi estruturado para aproveitar essa situação".

Tokamak é um tipo de dispositivo em que é possível realizar estudos de plasmas em condições de temperatura e densidade que permitam reações de fusão nuclear acontecerem de forma controlada a fim de viabilizar a produção de energia limpa, segura e virtualmente infinita em reatores nucleares a fusão. Para aprisionar e aquecer o plasma são utilizados campos criados por um conjunto de bobinas magnéticas nas quais fluem altas correntes elétricas (até 55 kA), gerando fortes campos magnéticos (até 1.5 T). O Laboratório de Física de Plasmas do IFUSP é a única instalação do hemisfério sul que opera um tokamak - o Tokamak à Chauffage Alfvén Brésilien (TCABR).

Canal reflete sobre esse novo cenário brasileiro: "O Brasil já esteve na vanguarda da fusão nuclear, mas infelizmente acabou perdendo liderança por causa de conjunturas políticas da época. Mas, dessa vez, parece que obteremos êxito devido ao apoio que estamos recebendo da CNEN e de membros do MCTI. Realizar pesquisa em fusão nuclear em um ambiente universitário tem suas limitações, pois o experimento é relativamente grande, com complexos subsistemas de alta potência, de alto custo e que requer uma quantidade significativa de pessoas trabalhando simultaneamente para a realização dos experimentos.

Canal detalha que, infelizmente, o progresso na pesquisa em fusão nuclear no cenário internacional não foi acompanhado no País. Grupos de plasma que realizavam trabalhos experimentais relevantes foram descontinuados, em particular o grupo da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), levando diversos pesquisadores a migrarem para a área de aplicações tecnológicas de plasmas. A principal razão para as dificuldades enfrentadas por esses grupos foi a falta de ambiente propício para operação de laboratórios de grande porte, que requerem equipes e instalações bem maiores que as usuais em outras áreas de física, com as quais tinham que competir dentro da estrutura universitária. Certamente o Laboratório de Física de Plasmas não enfrentou o mesmo tipo de dificuldade devido à tradição estabelecida no IFUSP na operação de grandes laboratórios, principalmente em física nuclear. Uma das principais características do IFUSP, que o destaca de outras instituições nacionais na área de Física, é a amplitude de seu campo de atuação. De fato, em nenhuma outra instituição brasileira um aluno de pós-graduação dispõe de tão ampla gama de opções para escolher seu tema de investigação, desde aplicações em ciências atmosféricas, biofísica, e outras relevantes, até tópicos avançados em física de altas energias, cosmologia e física matemática. A física de plasmas está entre as áreas em que o IFUSP se destaca por sua atuação pioneira no país, em particular com relação à sua aplicação à pesquisa em fusão nuclear controlada.

De acordo com o pesquisador, o Programa Nacional de Fusão Nuclear é formado por três pilares que norteiam diretrizes e ações de curto, médio e longo prazo.

O primeiro pilar é a construção de um laboratório de porte nacional para estudos avançados em fusão nuclear. Há uma chance que este novo laboratório - o Laboratório de Fusão Nuclear (LFN) - comece a ser construído já em 2025 no mesmo sítio do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB).

O segundo pilar trata da formação de recursos humanos. Neste momento, há poucas pessoas com a formação necessária para atuar no futuro laboratório. 

"Temos que formar uma nova geração de físicos de plasma em um tempo relativamente curto, mandar alunos para o exterior para se formarem em tecnologia de ponta em fusão, e torcer para que eles retornem para o País, assim como eu retornei depois de quase dez anos no exterior, para que trabalhem nesse novo laboratório e ajudem a avançar o nosso Programa Nacional" - reflete o docente.

Assim, já há estudantes brasileiros da área atuando no exterior e outros com a ida em planejamento: laboratórios na École Polytechnique Fédérale de Lausanne (Suíça), no Princeton Plasma Physics Laboratory (EUA) e na Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) são exemplos de instituições com parcerias vigentes. Vale notar também a importância do próprio Laboratório de Física de Plasmas do IFUSP e seu TCABR, que mantém uma rede de 38 pesquisadores por todo o país atuando em colaboração para a modernização do equipamento. Sobre esse trabalho, o pesquisador destaca: "A modernização do TCABR é uma parte fundamental do nosso Programa Nacional. Não só teremos uma máquina única no mundo, com capacidade de testar modelos físicos em condições extremas jamais atingidas, como também é através dela que estamos treinando nossos alunos em tecnologias de ponta e de alto padrão de pesquisa em fusão".

O terceiro pilar preconiza a criação de um mercado de fusão.

"Como a fusão nuclear está se tornando algo realmente palpável, ou seja, é algo que vai realmente ser capaz de produzir eletricidade dentro de 10 ou 15 anos, há um mercado surgindo de empresas querendo comercializar as tecnologias existentes ao redor de um reator de fusão. Então, o terceiro pilar do nosso Programa Nacional foca justamente na estruturação de um ambiente aqui no Brasil onde empresas privadas possam apostar na fusão. Será muito importante ter empresas brasileiras que possam desenvolver as tecnologias que vamos precisar no Programa Nacional, incluindo uma empresa para a fabricação de bobinas supercondutoras de alta temperatura. Existem hoje duas empresas de grande porte capazes de fabricar tais bobinas - essa empresa brasileira seria a terceira no mundo" - analisa Canal.

Para o novo tokamak proposto no PNFN, seriam necessários US$ 45 milhões para a compra de fitas supercondutoras de alta temperatura e outros US$ 55 milhões para a compra de materiais e equipamentos dessas empresas especializadas em fusão. Sensibilizado no contexto da pandemia, vendo o Brasil sem condições de fabricar respiradores em quantidade suficiente e enviando recursos valiosos para fornecedores estrangeiros, o pesquisador sugeriu investir aqui esses recursos e desenvolver toda a tecnologia em âmbito nacional. Visando atrair investidores locais, interessados em retornos de curto prazo, surgiu a ideia de desenvolver uma empresa que comercialize sistemas de armazenamento de energia baseados em supercondutores de alta temperatura. Dessa forma, a empresa nacional poderia atender às demandas internas.

"Hoje, por exemplo, um carro elétrico utiliza baterias de lítio. Essas baterias têm uma durabilidade de, talvez, 8 anos, no máximo. Depois, a bateria perde uma fração significativa de sua capacidade de armazenamento. E hoje, o custo de uma bateria é uma fração considerável do custo do carro. Esses sistemas supercondutores de armazenamento de energia têm uma vida útil virtualmente infinita, pois a energia é estocada no campo magnético - algo não físico que não deteriora, como o campo magnético ao redor de um ímã" - esclarece o pesquisador.

Comenta também que esse é apenas um exemplo das diversas indústrias que podem surgir no entorno da criação de um reator de fusão.

Em ofício enviado à diretoria do IFUSP em 30 de abril, a CNEN vem agradecer a "valiosa cooperação" do Professor Canal e formalizar o convite para a continuação de sua colaboração com os trabalhos de reativação da Rede Nacional de Fusão e de implementação do Programa Nacional de Fusão Nuclear.

Sobre a disposição para a continuidade do trabalho, o pesquisador segue animado. Convidado pela Agência Internacional de Energia Nuclear (IAEA) para uma apresentação sobre o plano brasileiro no contexto internacional, recebeu uma grande quantidade de mensagens de pesquisadores de todo o mundo interessados em colaborar. "Ver a repercussão positiva que nosso país está tendo lá fora é algo que tem me trazido muito entusiasmo", comenta.

Passados os momentos mais difíceis, Canal reflete positivamente sobre a transição da vida de pesquisador nos EUA para a volta para casa: recorda como, em dado momento, teve a certeza sobre o desejo de criar sua filha (estadunidense) no Brasil, próxima dos avós e familiares, com uma vivência cultural brasileira. Aponta também a oportunidade de alavancar a área de fusão no Brasil como um motivador adicional de seu trabalho: "Enquanto trabalhava na Europa e nos EUA, eu via os países prosperando e as empresas de tecnologia levando vantagem com os produtos de alto valor agregado que surgem da fusão, e eu contribuindo para aquilo. Pensei comigo, então, 'Não, agora chega. Agora é a vez do meu país’. [...] Então, voltei para contribuir de alguma forma para a minha gente. Por isso, quando vejo o que eu estou sendo capaz de contribuir, junto com meus pares, obviamente - não faço nada sozinho -, esse é um motivo de grande alegria e satisfação".

 

 

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