O prêmio Nobel de Física de 2024
Por Nestor Caticha, pesquisador do Instituto de Física da USP.
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O que é física? A pergunta feita a David Gross, prêmio Nobel de 2004, recebeu a resposta aparentemente trivial: Física é o que físicos fazem. Claro que isto leva à pergunta "como identificar um(a)?". Ele continuou, dizendo que físicos são aqueles que "estudaram o Jackson". Parece uma resposta burocrática, mas significa que pessoas que passaram por um treinamento, neste caso exemplificado por um livro clássico, têm uma forma de pensar e olhar para a natureza que os distingue. Max Born, prêmio Nobel de 1954, disse que o prêmio de Física do ano 2000 seria em Psicologia, querendo dizer que a próxima fronteira seria atacar, com a maneira de pensar característica da Física, problemas relacionados ao cérebro e como pensamos.
John Hopfield e Geoffrey Hinton receberam o prêmio Nobel de Física de 2024 por trabalhos fundamentais em áreas fora do que convencionalmente poderia ser aceito como Física. Há contribuições fundamentais que resolvem problemas que intrigam os físicos, como qual é o significado da função de onda ou o sinal da função β em QCD. O prêmio deste ano reconhece a expansão da Física conquistando novas áreas.
A mecânica estatística permitiu entender propriedades macroscópicas a partir de informação sobre as interações microscópicas. Mas, como Hopfield perguntou, "e se essas unidades não fossem átomos ou spins, mas neurônios, e as interações representassem vias de comunicação mediadas por sinapses?" Um século de técnicas e intuições desenvolvidas para entender matéria convencional ficaram disponíveis para entender modelos minimalistas de processos cognitivos, memórias associativas, suas possibilidades e suas limitações. Hopfield surpreendeu ao trazer para uma realidade concreta - onde a matemática permite descrever cuidadosamente aspectos da natureza do funcionamento do cérebro (ou modelos muito simplificados) - sonhos de cientistas e filósofos, que especularam sobre a natureza do que somos, do que sentimos, de como pensamos. Trabalhos podem ser considerados importantes por diversas razões. A avalanche de perguntas e ideias que o trabalho de Hopfield desencadeou transformou não só o que pensamos sobre a área de atuação da física, mas a própria sociedade em que vivemos. Entre os que se inspiraram com seu trabalho, Hinton trouxe contribuições de uma linha que passa por Turing, McCullogh, Pitts, William James, Sherrington e Ramon y Cajal. Hinton, ao longo dos anos com vários colaboradores, fez contribuições fundamentais para a atual revolução da Inteligência Artificial. Foi um dos redescobridores do método de treinamento de redes neurais multicamadas (back propagation) mostrando as possibilidades de produzir máquinas cujo desempenho pode justificar que sejam chamadas inteligentes. Pode ser uma surpresa para o leitor que o método de treinar uma rede neural seja, num nível profundo, um caso da aplicação da equação de Hamilton-Jacobi-Bellman. A introdução, por Hinton e colaboradores, da máquina de Boltzmann, mostrou que as condições de fronteira de um sistema magnético poderiam ser consideradas como "entrada” e ”saída" de uma rede neural. O impacto de Hinton foi fundamental quando, na virada do milênio, a utilidade das máquinas foi questionada por parecer que havia alternativas à inteligência artificial computacionalmente mais baratas. O avanço da tecnologia de processamento gráfico permitiu que máquinas impensáveis, num passado recente, pudessem ser imaginadas e construídas. Sem a suas contribuições ao entendimento da dinâmica de aprendizado em máquinas e sem suas contribuições práticas na construção de máquinas incrivelmente complexas - as máquinas que aprendem de arquitetura profunda "deep learning" - os avanços que surpreenderam a sociedade não seriam possíveis. O comitê Nobel entende a importância de suas contribuições e, a seguir, concede o prêmio de Química a uma contribuição que traz uma solução pragmática ao problema de enovelamento de proteínas, que vai revolucionar várias áreas da bioquímica e farmacologia, usando redes neurais. Claro que há muitas outras pessoas, que permanecerão anônimas para a sociedade, que contribuíram com o trabalho de suas vidas para este resultado. Mereceriam Hopfield e Hinton o prêmio Nobel de Química? Talvez. A estrutura da organização da ciência, e portanto, das universidades, reflete uma visão do século XIX. Quebrar a fronteira das caixas em que cientistas de uma denominação estão confinados e invadir outras áreas pode ser surpreendente, mas estes deixarão uma marca histórica ao construir novas maneiras de entender as relações entre diferentes aspectos da natureza.
Para os estudantes resta a pergunta: e agora, para onde? Estamos começando a entender o que significa informação, ao nível de interações quânticas, entre neurônios biológicos ou artificiais, e até entre agentes, sejam indivíduos que representam seres humanos ou instituições. Por exemplo, todos os que trabalham com problemas de mudanças climáticas entendem a necessidade de um modelo físico da interação dos componentes do oceanos e da atmosfera. Mas também devemos incluir nesse sistema instituições humanas com sua próprias dinâmicas e acoplamentos. A leis de Coulomb para estes sistemas estão esperando serem descobertas. No fim, entender as propriedades e limitações de sistemas de processamento de informação nos ajudará a entender a natureza e os limites desse entendimento. Será isso Física ou não? Quem se importa? A Física é sobre o que podemos dizer da natureza usando as ferramentas disponíveis - nossos cérebros e as máquinas artificiais - e, para as últimas, as contribuições de Hopfield e Hinton (que não é tecnicamente um físico, mas pensa como se fosse um) foram marcantes, na trajetória de uma aventura que ainda não sabemos onde nos levará.
*Nestor Caticha é Professor Titular do Departamento de Física Geral do Instituto de Física da USP. Em breve, anunciaremos o oferecimento de um colóquio, ministrado por ele, sobre o assunto.