A água é essencial para toda a química e para a vida, mas entender como ela interage com íons dissolvidos — como sódio e magnésio— tem sido um grande desafio científico. Agora, uma equipe internacional de pesquisadores liderada pela Universidade de Uppsala desenvolveu uma técnica inovadora de raios X que pode sondar diretamente a estrutura eletrônica e configuracional da camada de solvatação, a primeira camada de moléculas de água que envolve um íon em solução. O estudo, publicado na Nature Communications, relata a primeira observação de um processo chamado Decaimento Radiativo Intermolecular (IRD) em líquidos.
Nesse fenômeno, quando um íon na água é ionizado por raios X, um elétron de uma molécula de água próxima preenche a lacuna na camada interna do íon, e a energia liberada é emitida como um fóton de raio X. Esse fóton emitido carrega uma impressão digital distinta do ambiente imediato do íon, permitindo que os pesquisadores, na prática, sondem a camada de solvatação “por dentro”.
“A camada de solvatação determina como os íons se comportam na água, influenciando tudo, desde a função biológica até a corrosão e a química das baterias”, diz o autor principal, Dr. Johan Söderström. “Nossa descoberta mostra que os raios X agora podem ser usados para revelar diretamente a estrutura eletrônica dessa região interfacial crítica.”
Usando radiação síncrotron no Laboratório MAX IV em Lund, Suécia, a equipe investigou soluções aquosas de íons de sódio e magnésio. Ao analisar os fótons de raios X emitidos, eles identificaram assinaturas espectrais distintas originadas de moléculas de água vizinhas — evidência clara do processo IRD recém-descoberto.
A pesquisa, resultado de uma colaboração teórico-experimental, conta também com a participação do Professor Lucas Cornetta, do IFUSP, um dos pesquisadores da frente teórica do trabalho. Cornetta é um dos responsáveis pela modelagem teórica e computacional do sinal de IRD, abrangendo desde simulações para caracterizar estruturas dos íons metálicos em solução, a nível molecular, até o cálculo das seções de choque de emissão não-local de raios-X, baseados em métodos de química quântica. Sobre a importância do trabalho, comenta o professor do IF: "Além de aprofundar o entendimento da fenomenologia das interações intermoleculares em solução, a elucidação dos mecanismos de decaimento não-local abre caminho para uma nova técnica de caracterização, capaz de complementar métodos já consolidados, como a espectroscopia de fotoelétrons".
A modelagem teórica confirmou que o IRD surge da hibridização orbital sutil entre o íon e as moléculas de água circundantes. Notavelmente, o processo é sensível apenas à primeira camada de solvatação, tornando o IRD uma sonda excepcionalmente seletiva de ambientes químicos locais em líquidos.
“Este é o primo radiativo do conhecido Decaimento Coulombiano Intermolecular”, explica o autor sênior, Prof. Olle. Björneholm. “Mas, ao contrário dos métodos baseados em elétrons, o IRD emite raios X que podem escapar das profundezas do líquido, permitindo-nos explorar as propriedades da solução em sua totalidade.”
Além do sódio e do magnésio, os pesquisadores também sugerem que o IRD pode ser detectável em outros sistemas, incluindo íons de metais de transição e ânions, sinalizando que o fenômeno é geral — e potencialmente transformador para o estudo da química aquosa e biológica. Essa descoberta abre caminho para estudos específicos de elementos e sítios da estrutura de solvatação, ligações químicas e dinâmica ultrarrápida em líquidos usando fontes avançadas de síncrotron e laser de elétrons livres.